12 dezembro 2021


 




Uma Transição casa bem com uma Reflexão

“Não se poderá acreditar, hoje, na sua profecia”, P. Hetzel (1863 ), editor de Júlio Verne.

A. Betâmio de Almeida

18 de Novembro de 2021

O conhecimento do efeito de estufa na atmosfera começa no séc. XIX com várias contribuições. Entre eles, o nobelizado S. Arrhenius apresentou em 1896, no Philosophical Magazine and Journal of Science, a primeira quantificação do CO2 nesse efeito. Ao longo do séc. XX uma plêiade de autores (cientistas e engenheiros) foi apresentando trabalhos e avisos. Surgem as ciências e as engenharias do Ambiente. Em 2021, no séc. XXI, dois cientistas recebem o prémio Nobel nesta área. Dá para reflectir. Neste ano, a COP26 em Glasgow e a transição climática ocupam a comunicação social. Publicam-se críticas e exigências e as ruas enchem-se com protestos.

Cientistas apresentam diagnósticos e antecipam consequências perturbadoras. São exigidas medidas drásticas em poucos anos para evitar o colapso ambiental. A descarbonização e os combustíveis, a sobriedade energética e os edifícios, a justiça climática, a sustentabilidade ambiental e os processos industriais, a mudança na mobilidade e nas mentalidades, a carne e o metano a evitar e a água a faltar para poupar, ou em excesso para evitar. Tudo isto é pouco e parece atrasado. É difícil não estar de acordo. Os adultos parecem estar ultrapassados, mas é compreensível que os adolescentes abracem causas que consideram perfeitas e sejam radicais a pedir soluções. Simplificando assim o problema e olvidando o doloroso.

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A posição pública de muitos especialistas, climatólogos e activistas seniores segue um padrão reivindicativo que coloca totalmente a responsabilidade e a acção nos governos e, por vezes, nos países. Sim, os governos são, de modo formal, responsáveis pelo que ocorre em cada território e pela respectiva população e ainda não existe um governo planetário. Mas, na realidade e neste caso, a situação é mais complexa e ultrapassa fronteiras e as ideias feitas. Os acordos entre os governos dos países serão muito positivos para a causa ambiental, mas o cerne do problema ambiental é um dilema de difícil solução. Numa época de construção de muros, tem havido um muro virtual entre o presente e o passado, entre o que se deseja agora e a natureza humana do processo que se tem vindo a desenvolver há muito tempo ultrapassando os governos.

Na minha opinião, a crise ambiental é um espelho no qual aparecem os responsáveis: “Nós Todos”. Disse António Guterres que “estamos a cavar a nossa sepultura”. Uma metáfora forte, mas incompleta: uns têm uma escavadora potente, mas a maioria tem uma pequena pá de praia. O “Nós” é muito desigual: 1% da população (com mais rendimentos) produz 16% da poluição mundial de acordo com o The Guardian (5/11/21). Algo semelhante ocorre entre países ricos e pobres. Os especialistas afirmam que este processo teve início na Revolução Industrial, mas é raro a análise histórica prosseguir até à época presente, como se o Tempo fosse só Presente e Futuro. Com a Revolução Industrial veio a aplicação intensiva dos conhecimentos científicos e das técnicas na produção para comercialização. Exceptuando alguns períodos de crises severas, a vontade predominante foi a de uma produção sempre crescente e um consumo sempre crescente de recursos naturais e energia. Economistas, engenheiros, empresários e políticos associaram-se cada vez mais numa ideia: crescimento na produção equivale a desenvolvimento, mais valor acrescentado e progresso social (o PIB e outros indicadores têm que aumentar sempre). O muito bom que foi acontecendo na saúde e na qualidade de vida é louvável e não está em causa, mas este processo foi escavando o planeta e o seu clima.

Ao longo de gerações, muitos de “Nós” estiveram directamente envolvidos na formação, concepção, produção, gestão e comercialização de poluentes, nomeadamente na extracção, preparação e transporte de combustíveis. E a maioria na compra e uso de produtos que se apresentaram como os mais convenientes ou necessários e com chancela de qualidade técnica. Serão os governos os mais responsáveis por este processo? Os países mais poluidores são só o resultado da acção dos seus governos ou serão condicionados por outros poderes? Os governos são cada vez mais sensíveis a indicadores da situação económica atendendo ao reflexo desta na vida e desejos das populações ou, então, a uma competição estratégica. Ao mantra “são as empresas que criam a riqueza” deveria juntar-se “e são as empresas a origem da maioria da poluição”. Na verdade, atribuem-se aos governos a posse das alavancas para a transição, mas há milhões de outras alavancas, algumas mais poderosas do que as dos governos democráticos.

Há a conhecida vontade de poder que caracteriza a natureza humana: ambição e desejo de atingir o sucesso por meio da actividade produtiva e comercial, de alguns. A exigência da carreira profissional, de muitos, que pode afastar a reflexão sobre possíveis efeitos ambientais do que se executa. Mas a realidade roda: a experiência pessoal recorda-me a resistência contra as energias renováveis que agora são queridas, a oposição à internalização dos custos ambientais e a defesa por académicos da deslocalização, agora substituída por economia circular, sustentabilidade, autonomia e reindustrialização.

O dilema atrás referido é este: nas democracias os políticos estão entre a vontade de defesa do ambiente, o poder de grupos económicos e a vontade dos eleitores. Eles sabem que a transição em causa pode vir a ser muito dolorosa para as pessoas e suscitar desejos contraditórios insanáveis. A crise da covid-19 foi uma amostra deste comportamento social. Mas em democracia a mudança virtuosa e solidária poderá também vir das pessoas, de “Nós”. Que não seja a destempo.

Os políticos estão entre a vontade de defesa do ambiente, o poder de grupos económicos e a vontade dos eleitores. Eles sabem que a transição pode ser muito dolorosa e suscitar desejos contraditórios. A covid-19 foi uma amostra

 

A COP26 terminou. Assim como os rochedos desviam o curso de água de um rio, as COP poderão ir mudando o sentido das vontades humanas.

Mas não há só uma transição em curso. Para além da transição ambiental e da energia, há também uma transição digital com muito poderosos actores e impulsionada pelos governos europeus e por novas vontades. Se no caso da primeira transição há algumas metas bem definidas, no caso do digital não se vislumbra um horizonte bem definido de objectivos a atingir ou a evitar. Ouve-se uma justificação: a competitividade. Voltamos à natureza humana e ao risco de os vindouros terem de afirmar que não há uma Humanidade B. Ou haverá? Esse é um processo para outra reflexão.

A frase condenatória que escolhi do editor de Júlio Verne é relativa ao romance Paris no séc. XX (escrito e guardado em 1863, mas só publicado em 1994). A frase é da carta de P. Hetzel ao escritor recusando a obra, e exemplifica o receio de se aceitar uma reflexão menos radiosa ou distópica sobre o futuro e a técnica. Sugiro a leitura desta obra.

Professor catedrático (emérito) da Universidade de Lisboa/Instituto Superior Técnico

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