Biodiversidade
2020: um super-ano perdido
Importa aproveitar a oportunidade para uma recuperação económica
transformadora, alterar o cálculo do desenvolvimento económico e implantar
pacotes de estímulo que ofereçam incentivos para actividades mais sustentáveis
e com base em soluções naturais.
22 de Maio de 2020 Maria Amélia Martins-Loução
Este ano deveria ser um “Super-Ano para
a Biodiversidade”, com várias reuniões globais: um Congresso Mundial de
Conservação, uma Conferência das Nações Unidas para o Oceano e uma Cimeira das
Nações Unidas para a Biodiversidade – todos culminando para o desenvolvimento
de uma nova “Estratégia para a Biodiversidade”. O ano em que a Década de
Restauro Ecológico e o Compromisso Verde da União Europeia poderiam passar à
acção e as propostas baseadas em soluções naturais para as negociações
climáticas seriam reconhecidas. A covid-19 veio alterar os planos de
acção. Mas hoje, mais do que nunca, o Homem tem consciência do que está a fazer
ao planeta.
A corrente pandemia provocada pelo vírus
SARS-CoV-2 originou uma transformação global das sociedades, alterando
relacionamentos familiares e devastando economias, colocando em risco a
sobrevivência de muitas pessoas não só pela doença mas, especialmente, pela
quebra dos meios de sobrevivência. Mas durante o período de confinamento houve,
também, a oportunidade, que o recolher obrigatório permitiu, de abrir a janela e
olhar para fora com outra disponibilidade. A transformação da paisagem
acontecia ao ritmo normal: desabrochavam as flores, os chilreios aumentavam, os
insectos zumbiam, indiferentes à preocupação e cuidados sanitários, invadindo
espaços vazios, mesmo em bairros citadinos.
Se este pode ter sido um período de
introspecção para apreciar a resposta rápida das espécies, por outro pode
passar a noção, errada, de que nem a crise pandémica é capaz de destruir a
natureza. Importa, agora, aproveitar a oportunidade para uma recuperação
económica transformadora, alterar o
cálculo do desenvolvimento económico e implantar pacotes de estímulo
que ofereçam incentivos para actividades mais sustentáveis e com base em
soluções naturais.
A população humana, actualmente com mais
de 7,8 mil milhões de pessoas, representa apenas 0,01% de todas as espécies
presentes no planeta. No entanto, o Homem, desde 1970, causou o desaparecimento
de 60% da população global de vertebrados, mais de 40% das espécies de insectos
e a perda, por ano, de três espécies de plantas com sementes. A perda de
biodiversidade é um dos maiores riscos do século XXI, já que impõe
custos sérios à economia e dificulta muito a abordagem de desafios globais,
como as mudanças climáticas. Durante os dois últimos séculos o Homem
transformou a maioria dos ecossistemas do mundo, destruindo, degradando e
fragmentando habitats terrestres, marinhos e outros ambientes aquáticos e
minando os serviços que eles prestam. Agora é reconhecida a interligação entre
perda de diversidade e alterações climáticas e, por isso, não foi de estranhar
o alerta dado no último relatório do Fórum Económico Global sobre o perigo do
colapso dos ecossistemas. Pela primeira vez, o mundo económico identificou a
perda de biodiversidade como principal risco nos próximos dez anos e reconheceu
a sua importância para a manutenção dos serviços do ecossistema, vitais para o
bem-estar humano.
Um estudo recente da Universidade de
Derby, do Reino Unido, mostrou que há um aumento significativo da saúde e bem-estar
das pessoas que contactam ou exercem actividades em espaços naturais. Claro que
a natureza não pode ser vista ou encarada como cura milagrosa. O que estes
resultados científicos demonstram é que o bem-estar, a felicidade que se sente
quando se trata dum jardim, duma horta, dum espaço natural, traz benefícios
para a saúde. Isto significa que o desenho e desenvolvimento dos espaços
urbanos, o envolvimento dos cidadãos no espaço público e o tempo que lhes pode
ser atribuído para o fazerem vai ser crucial para o futuro das denominadas
“cidades verdes” e a conservação da biodiversidade, mesmo em metrópoles. Não
importa pensar apenas na redução do tráfego automóvel, na plantação de faixas
de árvores só para embelezar, há que envolver os cidadãos no cuidado dos “seus”
espaços verdes, de bairro, estimulando o seu interesse e cuidado, como se de
uma pequena horta se tratasse. O envolvimento das pessoas num espaço
comunitário tem provado, em muitos outros locais, uma mais-valia para a
sustentabilidade e desenvolvimento das cidades. Isso requer a contratação de
técnicos especializados sobre biodiversidade e gestão de espaços verdes nas
autarquias que, além de agir no terreno, podem dialogar, estimular e apoiar
iniciativas cidadãs para a conservação.
Os ecossistemas estão a aproximar-se de
limites e níveis críticos que, se ultrapassados, resultarão em mudanças
persistentes e irreversíveis (ou muito caras para reverter) na estrutura, na
função e na prestação de serviços, com consequências ambientais, económicas e sociais
profundamente negativas. Gerir e mitigar com precisão esses riscos requer uma
mudança fundamental no pensamento sobre o valor da natureza, incluindo a
contabilização do capital natural e os custos da degradação do ecossistema no
desenvolvimento económico. Não faz, por exemplo, sentido continuar a incentivar
explorações agronómicas, como as estufas no litoral alentejano, em pleno Parque
Natural ou na região interior com os olivais intensivos. Lado a lado, os
ecossistemas naturais e biodiversos que ainda restam são desvalorizados ou
cobiçados para transformações turísticas tão apetecíveis.
Será urgente a revisão da Rede Ecológica
e Agrícola Nacional, a reformulação e o financiamento dos parques e reservas.
Com esta revisão podiam ser promovidos e incentivados novos modelos de negócios
sobre valorização e conservação do património natural, que podiam tirar partido
da exploração turística, da educação para a sustentabilidade e estimular a
economia. As soluções para evitar a perda de
biodiversidade são complexas mas, se não forem tomadas medidas
transformadoras com urgência, os riscos e impactos de tal perda serão
inevitáveis.
Bióloga, professora catedrática de Ciências Universidade de Lisboa;
presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia