Uma Transição casa bem com uma
Reflexão
“Não se
poderá acreditar, hoje, na sua profecia”, P. Hetzel (1863 ), editor de Júlio
Verne.
A. Betâmio
de Almeida
18 de
Novembro de 2021
O
conhecimento do efeito de estufa na atmosfera começa no séc. XIX com várias
contribuições. Entre eles, o nobelizado S. Arrhenius apresentou em 1896, no Philosophical
Magazine and Journal of Science, a primeira quantificação do CO2 nesse
efeito. Ao longo do séc. XX uma plêiade de autores (cientistas e engenheiros)
foi apresentando trabalhos e avisos. Surgem as ciências e as engenharias do
Ambiente. Em 2021, no séc. XXI, dois cientistas recebem o
prémio Nobel nesta área. Dá para reflectir. Neste ano, a COP26 em Glasgow e a transição climática
ocupam a comunicação social. Publicam-se críticas e exigências e as ruas
enchem-se com protestos.
Cientistas
apresentam diagnósticos e antecipam consequências perturbadoras. São exigidas
medidas drásticas em poucos anos para evitar o colapso ambiental. A
descarbonização e os combustíveis, a sobriedade energética e os edifícios, a
justiça climática, a sustentabilidade ambiental e os processos industriais, a
mudança na mobilidade e nas mentalidades, a carne e o metano a evitar e a água
a faltar para poupar, ou em excesso para evitar. Tudo isto é pouco e parece
atrasado. É difícil não estar de acordo. Os adultos parecem estar
ultrapassados, mas é compreensível que os adolescentes abracem causas que
consideram perfeitas e sejam radicais a pedir soluções. Simplificando assim o
problema e olvidando o doloroso.
A posição
pública de muitos especialistas, climatólogos e activistas seniores segue um
padrão reivindicativo que coloca totalmente a responsabilidade e a acção nos
governos e, por vezes, nos países. Sim, os governos são, de modo formal,
responsáveis pelo que ocorre em cada território e pela respectiva população e
ainda não existe um governo planetário. Mas, na realidade e neste caso, a
situação é mais complexa e ultrapassa fronteiras e as ideias feitas. Os acordos
entre os governos dos países serão muito positivos para a causa ambiental, mas
o cerne do problema ambiental é um dilema de difícil solução. Numa época de
construção de muros, tem havido um muro virtual entre o presente e o passado,
entre o que se deseja agora e a natureza humana do processo que se tem vindo a
desenvolver há muito tempo ultrapassando os governos.
Na minha
opinião, a crise ambiental é um espelho no qual
aparecem os responsáveis: “Nós Todos”. Disse António Guterres que “estamos a cavar a nossa
sepultura”. Uma
metáfora forte, mas incompleta: uns têm uma escavadora potente, mas a maioria
tem uma pequena pá de praia. O “Nós” é muito desigual: 1% da população (com
mais rendimentos) produz 16% da poluição mundial de acordo com o The
Guardian (5/11/21). Algo semelhante ocorre entre países ricos e pobres. Os
especialistas afirmam que este processo teve início na Revolução Industrial,
mas é raro a análise histórica prosseguir até à época presente, como se o Tempo
fosse só Presente e Futuro. Com a Revolução Industrial veio a aplicação
intensiva dos conhecimentos científicos e das técnicas na produção para
comercialização. Exceptuando alguns períodos de crises severas, a vontade
predominante foi a de uma produção sempre crescente e um consumo sempre
crescente de recursos naturais e energia. Economistas, engenheiros, empresários
e políticos associaram-se cada vez mais numa ideia: crescimento na produção
equivale a desenvolvimento, mais valor acrescentado e progresso social (o PIB e
outros indicadores têm que aumentar sempre). O muito bom que foi acontecendo na
saúde e na qualidade de vida é louvável e não está em causa, mas este processo
foi escavando o planeta e o seu clima.
Ao longo de
gerações, muitos de “Nós” estiveram directamente envolvidos na formação,
concepção, produção, gestão e comercialização de poluentes, nomeadamente na
extracção, preparação e transporte de combustíveis. E a maioria na compra e uso
de produtos que se apresentaram como os mais convenientes ou necessários e com
chancela de qualidade técnica. Serão os governos os mais responsáveis por este
processo? Os países mais poluidores são só o resultado da acção dos seus
governos ou serão condicionados por outros poderes? Os governos são cada vez
mais sensíveis a indicadores da situação económica atendendo ao reflexo desta
na vida e desejos das populações ou, então, a uma competição estratégica. Ao
mantra “são as empresas que criam a riqueza” deveria juntar-se “e são as
empresas a origem da maioria da poluição”. Na verdade, atribuem-se aos governos
a posse das alavancas para a transição, mas há milhões de outras alavancas,
algumas mais poderosas do que as dos governos democráticos.
Há a
conhecida vontade de poder que caracteriza a natureza humana: ambição e desejo
de atingir o sucesso por meio da actividade produtiva e comercial, de alguns. A
exigência da carreira profissional, de muitos, que pode afastar a reflexão
sobre possíveis efeitos ambientais do que se executa. Mas a realidade roda: a
experiência pessoal recorda-me a resistência contra as energias renováveis que
agora são queridas, a oposição à internalização dos custos ambientais e a
defesa por académicos da deslocalização, agora substituída por economia
circular, sustentabilidade, autonomia e reindustrialização.
O dilema
atrás referido é este: nas democracias os políticos estão entre a vontade de
defesa do ambiente, o poder de grupos económicos e a vontade dos eleitores.
Eles sabem que a transição em causa pode vir a ser muito dolorosa para as
pessoas e suscitar desejos contraditórios insanáveis. A crise da covid-19 foi
uma amostra deste comportamento social. Mas em democracia a mudança virtuosa e
solidária poderá também vir das pessoas, de “Nós”. Que não seja a destempo.
Os políticos estão entre a vontade
de defesa do ambiente, o poder de grupos económicos e a vontade dos eleitores.
Eles sabem que a transição pode ser muito dolorosa e suscitar desejos
contraditórios. A covid-19 foi uma amostra
A
COP26 terminou. Assim como os rochedos desviam o curso de água de um rio,
as COP poderão ir mudando o sentido das vontades humanas.
Mas não há
só uma transição em curso. Para além da transição ambiental e da energia, há
também uma transição digital com muito poderosos actores e impulsionada pelos
governos europeus e por novas vontades. Se no caso da primeira transição há
algumas metas bem definidas, no caso do digital não se vislumbra um horizonte
bem definido de objectivos a atingir ou a evitar. Ouve-se uma justificação: a
competitividade. Voltamos à natureza humana e ao risco de os vindouros terem de
afirmar que não há uma Humanidade B. Ou haverá? Esse é um processo para outra
reflexão.
A frase
condenatória que escolhi do editor de Júlio Verne é relativa ao romance Paris
no séc. XX (escrito e guardado em 1863, mas só publicado em 1994). A
frase é da carta de P. Hetzel ao escritor recusando a obra, e exemplifica o
receio de se aceitar uma reflexão menos radiosa ou distópica sobre o futuro e a
técnica. Sugiro a leitura desta obra.
Professor
catedrático (emérito) da Universidade de Lisboa/Instituto Superior Técnico