As alterações climáticas, que hoje atingem todo o planeta Terra com terríveis desastres ambientais, irão continuar em 2018 dada a corrupção e dependência política de muitos governos de interesses económicos depredadores do ambiente e da vida.
Vozes autorizadas como a de Fernando Pessoa são cada vez mais necessárias. A nossa homenagem ao seu combate.
AMA
Fernando Pessoa, o arquitecto
que plantou poesia na paisagem
Aprendeu arquitectura com Gonçalo
Ribeiro Telles e fez da defesa do ambiente uma lição de vida e para a vida em
liberdade. Fernando Santos Pessoa, octogenário, continua a “intervir na
paisagem” e a desenhar jardins sem palmeiras nem relvados.
31 de Dezembro de 2017
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Ao
pé de uma velha alfarrobeira, com mais de dois séculos, Fernando Pessoa mostra
o seu trabalho mais recente: o percurso ecobotânico Manuel Gomes Guerreiro, um
jardim in
situ para dar a conhecer a história do
barrocal algarvio, contada através das plantas. Ao completar 80 anos, um dos
arquitectos paisagistas mais influentes da sua geração — herdeiro do legado de
Gonçalo Ribeiro Telles — continua a trabalhar e a publicar. Intervir na Paisagem é o título do último livro. O seu legado, que se
estende do Algarve ao Gerês, passando pela Madeira, levou a que a Universidade
do Algarve (UAlg) lhe prestasse recentemente homenagem. Além de tudo o mais, é
também um professor muito especial.
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Esta
sua nova obra, um ecomuseu situado entre o barrocal e a serra do Caldeirão, vai
mostrar como se cruzam as “paisagens culturais” com o património natural. “As
alfarrobeiras, tal como os loureiros, são espécies — relíquias que ficaram do
tempo em que o Mediterrâneo era tropical e subtropical”, diz o arquitecto,
evocando a aridez do deserto do Norte de África, cada vez mais próxima . À
entrada do terreno onde vai nascer o jardim, faz uma pausa, puxa pelo cachimbo.
“É o meu vício”, confessa. A árvore, de pé rugoso, está debruçada sobre a
montanha, como se fosse uma sentinela a indicar o percurso ecobotânico que ali
vai nascer.
O
projecto que assina, em co-autoria com João Marum, junta inovação (tecnologia
3D, concebida na Universidade do Algarve) com a arte mais tradicional de moldar
a paisagem. Assim, o visitante, ao deambular pela montanha, fica, com a ajuda
do telemóvel, a conhecer a história das plantas mais emblemáticas do
barrocal. O botânico Rosa Pinto registou e identificou mais de 1700 espécies
nesta zona do Algarve, sobretudo no vale da Fonte Benémola. “A flora do Algarve
merece um lugar para ser estudada”, diz, evocando o papel destacado que teve
Manuel Gomes Guerreiro, natural de Querença, enquanto cientista e defensor da
floresta mediterrânica. A obra, com custo estimado em cerca de 200 mil euros,
foi financiada pelo programa operacional do Algarve Cresc2020 e os trabalhos arrancam
no primeiro trimestre do próximo ano.
O
fundador e antigo presidente do Serviço Nacional de Parques e Reservas, actual
Instituto da Conservação da Natureza e Florestas, concebeu um jardim
aproveitando plantas autóctones, o que lhe permite quase não precisar de rega.
“A seca não está a ser levada a sério”, lamenta, insurgindo-se contra a
“palmeirite aguda” e as grandes áreas de relvados que existem de norte a sul do
país. “Espalhou-se a ideia de que uma paisagem turística exótica, sempre verde,
e com muitas palmeiras, teria muitos mais atractivos para quem visita a
região.”
Fernando
Pessoa foi docente em várias academias, sendo co-fundador do curso de
Arquitectura Paisagística da UAlg, onde leccionou durante dez anos. “Marcou a
universidade para sempre”, afirmou o então reitor António Branco. “Colocou
poesia na paisagem”, sintetizou. A prenda de aniversário, entregue durante a
homenagem que lhe foi prestada pela Associação dos Arquitectos Paisagistas, não
podia ser mais apropriada: Um carvalho-de-monchique (Quercus canariensis), espécie rara, ameaçada pelos fogos. O objectivo era
que o exemplar fosse plantado no jardim da sua casa, mas vai ter outro destino.
“Ofereci-o à Fundação Manuel Viegas Guerreiro (FMVG) para integrar o percurso
ecobotânico — ali vai estar bem acompanhado”, comenta.
Pai da ecomuseulogia
O
conceito que agora está a pôr em prática — a ecomuseulogia — foi introduzido
por este dinâmico arquitecto. Fernando Pessoa sempre assumiu, há muitos anos,
uma nova linguagem na protecção e conservação do ambiente. “Toda a paisagem é
cultural, [alterada pelo homem ao longo de séculos]”, sublinha. “A cultura e a
identidade portuguesas fundaram-se na ruralidade e no mar — e ambas as origens
daquilo que fomos ao longo dos séculos estão ameaçadas”, alerta.
Há
quem lhe chame herdeiro de Gonçalo Ribeiro Telles, embora tenha traçado o seu
próprio percurso, desbravando novos caminhos na sensibilização de todos para as
questões ambientais. A relação de proximidade com aquele que foi o seu
professor de Arquitectura Paisagista surge ainda durante as aulas, no início da
década de 60. “Foi uma surpresa para mim, quando ele foi expulso do ensino —
pensava que só os comunistas e republicanos é que eram presos, mas, tratando-se
de um monárquico, não percebi o castigo”, observa.
A
partir desse momento, haveria de nascer uma amizade que ainda hoje se mantém:
“Quando ainda era estudante, fui trabalhar no seu atelier e vivi de perto as
lutas que travou.” Mais tarde, quando se dá o 25 de Abril, Fernando Pessoa
trabalhava na Direcção Regional de Urbanismo do Funchal, onde se bateu pela
preservação das levadas. Um dia recebeu de Ribeiro Telles, o então novo
secretário de Estado do Ambiente, um telefonema em jeito de ultimato: “Se não
vier trabalhar comigo, nunca mais lhe falo.” Não foi preciso muita insistência,
fez as malas e regressou ao continente, para ocupar o lugar de chefe de
gabinete do novo titular de uma pasta governamental acabada de surgir: o
ambiente. Na verdade, acrescenta, “também estava farto de ouvir Alberto João
Jardim [chefe do governo da Madeira] praguejar contra os “cubanos do
continente”. Apesar da ebulição política que o país então vivia, conseguiu
lançar o instrumento que viria a ser o pilar das primeiras políticas de
ordenamento do território — fundou e foi o primeiro presidente do Serviço
Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico, em 1976, hoje
Instituto da Conservação da Natureza e Florestas.
O
livro Intervir
na Paisagem, que saiu há cerca de um mês, reproduz
33 textos escritos por Pessoa em diferentes períodos. A esta obra, com
diferentes abordagens sobre as questões ambientais, juntam-se mais duas dezenas
de títulos do mesmo autor. Os arquitectos paisagistas portugueses, observa,
“nunca se deram muito ao trabalho de escrever, a não ser ocasionalmente em
artigos de revistas ou para palestras”. Porém, constata, “existem colegas de
grande qualidade e enorme projecção, que trabalham em vários países, e cuja
actividade quase passa despercebida”. Por isso, tomou a iniciativa de divulgar
os textos de Gonçalo Ribeiro Telles e Ilídio de Araújo, entre outros.
Uma “gaiola” poluída
Na
nota de introdução do livro, Jorge Paiva, catedrático da Universidade de
Coimbra, elogia o trabalho dos que lutam contra “este estado de inconsciência
global” em que se encontra o planeta. Fernando Pessoa é apontado como uma
referência no universo dos que erguem a voz contra os atentados ambientais.
“Foi e mantém-se um lutador incansável”, enfatiza. A maioria da população
mundial, diz o académico, biólogo, “não faz a mínima ideia do que está a
acontecer ao globo terrestre que, actualmente, não é mais do que uma ‘gaiola’
poluída”. A floresta, acrescenta, está reduzida a 20% daquela que existia
quando a nossa espécie apareceu no globo. O resultado do desordenamento traduz-se
no drama “do país a arder todos os Verões, entre muitos outros”.
Os
fogos e a seca têm estado no centro das intervenções de Fernando Pessoa, que
fez dos ensinamentos de Gonçalo Ribeiro Telles uma cartilha e um exemplo de
humildade para encarar a natureza. “Não existe no ADN da maioria dos políticos
o gene da sabedoria do longo prazo — todos querem fazer figura rapidamente”,
escreveu, no PÚBLICO, em 2016, chamando a atenção para o (des)ordenamento do
território. A floresta e a mata, enfatiza, “são realidades de longo prazo,
donde a dificuldade dos políticos em decidirem políticas de reconversão
florestal que não darão votos a curto prazo”.
Apesar
de os políticos reconhecerem que há sérios problemas ambientais, como as
alterações climáticas, têm de passar das palavras ao actos, insiste. “É preciso
um ministério do Ambiente com convicções ambientalistas e não um mero executor
de medidas desgarradas e antiecológicas”, escreveu no seu blogue, criticando muitas das decisões que foram tomadas
nas últimas décadas: “Os Serviços Florestais eram um dos mais prestigiados e
antigos órgãos da administração pública, vinham do tempo da monarquia e hoje
desapareceram como entidade autónoma”, alertou.
Em
relação à lei da Reserva Ecológica Nacional (REN), dá razão a quem critica a
forma como está ser utilizada. “A REN é aplicada como se fosse um conjunto de
regras uniformes para todo o país e não, como é o seu espírito, de normas
adaptáveis regional e localmente”, aponta.
De
entre os livros publicados por Fernando Pessoa, destacam-se duas obras: Fotobiografia de Manuel Gomes Guerreiro, em 2007, e Fotobiografia de Gonçalo Ribeiro Telles, em 2011 — duas figuras de referência no ambiente em
Portugal. O primeiro, no seu livro O Homem na Perspectiva Ecológica, escreveu: “Ao delimitá-los [jardins] e preservá-los,
está-se a contribuir para que neles o Homem aprenda a conhecer, a respirar e a
amar a Natureza. Só assim poderá sobreviver.” Agora vai surgir um “percurso
ecobotânico”, com o seu nome, na aldeia (Querença), onde nasceu Gomes
Guerreiro, que foi o primeiro reitor da Universidade do Algarve.
Os
passeios no areal da ria Formosa, seguidos de banhos de mar — faça chuva ou
faça frio — parecem ser a fonte de juventude deste octagenário. Oito décadas em
que, além de deixar uma pegada indelével na defesa do ambiente no país, foi
inspiração para muitos, que hoje lhe seguem os passos na luta para que o homem
pare de destruir a única “casa” que tem para habitar.
tp.ocilbup@zeveri
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